A Pizza Literária on line de 18 de março marcou a entrega do Prêmio Flerts Nebó para a melhor prosa apresentada nas reuniões de 2019: “Vassoura de Sombras” de Sérgio Perazzo. A Primeira Menção Honrosa coube a Helio Begliomini (com o texto “Entrelinhas”), tendo Sérgio Perazzo recebido a Segunda Menção Honrosa (“História de Um Cordão de Sapato”). Os textos podem ser conferidos nesta edição do “O Bandeirante”.
Agradecemos aos avaliadores: Francisco José Soares Torres (regional CE), Arquimedes Viegas Vale (MA) e Paulo Afonso Correia de Paiva (PE).
VASSOURA DE SOMBRAS
Naquele canto escuro sempre havia um resto de sol que uma vassoura de sombras varria para depois do poente ou para baixo do tapete, conforme o caso.
Dependia até se era horário de verão, do fuso horário, das tinturas do dia e dos ventos alísios, quer sudeste, quer noroeste, aquele que balançasse mais, sacudindo canoas e veleiros ancorados na baía, naquele braço perdido de mar, antes da lua se tornar espelho daquele fim de tarde.
Quase todo dia era essa a hora em que nos encontrávamos sem precisar marcar com antecedência, sentados nas pedras em poses pensativas de Rodin, imóveis esculturas embebidas no marulhar das ondas a beijar nossos pés descalços.
E ali ficávamos permanentemente e, se possível, por toda eternidade, adiando aquele resto de sol teimando em não perder o calor e o brilho.
Como anteparo de tudo isso, a noite lutava para se impor, para substabelecer seu negrume antes mesmo da vela acesa, do lampião a gás, das lamparinas a óleo, das lâmpadas de mercúrio. Para isso, delineava cada perfil nascido do lusco-fusco, da obscuridade incessante, a imaginação mórbida trazendo de volta o Monstro da Lagoa Negra, do Loch Ness ou Jack, o Estripador, tropeçando no chão pedregoso das docas do cais.
Só depois, os primeiros fantasmas já acalmados, nos dispúnhamos a esticar as pernas e aspirar profundamente o ar marinho. Só ainda depois, bem depois, as palavras se decompunham sussurradas, indefinidas, descosturando o silêncio. Só então a conversa se fazia presente, integrada à paisagem escura e à harmonia incessante da rouquidão das profundezas do mar, da superfície feita de espumas, descolando a areia de seu berço mole e áspero, amparada por cacos de conchas e escamas abandonadas ao movimento das marés e ao gosto do sal.
Foi justamente nesta fugaz interposição da noite que, num repente, me deparei com a verdade dos seus olhos de um jeito como nunca tinha visto antes. Um instante de desproteção, uma espécie de estrabismo da alma, fortaleza logo retomada, imediatamente recuperada, prontamente revestida da máscara de sempre, como aquele resto de sol teimando resistir a uma vassoura de sombras. Tive a certeza que naquele momento eu amei e amei como nunca tinha amado, como nunca sonhara amar. Ver como nunca tinha visto. Romper com os limites entre dia e noite, terra e mar, mar e pedra, pedra e areia.
Há resposta para isso ou só perguntas? Me explique. Transcendência simplesmente? Exacerbação tipicamente romântica? Utopia escancarada? Um acontecimento banal sequer arranhando o cotidiano? Uma fotografia em preto e branco? Ou a indescritível sensação do sentimento humano mais profundo, espelho de nós mesmos, neste mergulho abissal de sombra e luz?
SÈRGIO PERAZZO
Prêmio Flerts Nebó Melhor Prosa 2019