sábado, 20 de março de 2021

PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2019

 A Pizza Literária on line de 18 de março marcou a entrega do Prêmio Flerts Nebó para a melhor prosa apresentada nas reuniões de 2019: “Vassoura de Sombras” de Sérgio Perazzo. A Primeira Menção Honrosa coube a Helio Begliomini (com o texto “Entrelinhas”), tendo Sérgio Perazzo recebido a Segunda Menção Honrosa (“História de Um Cordão de Sapato”). Os textos podem ser conferidos nesta edição do “O Bandeirante”.

Agradecemos aos avaliadores: Francisco José Soares Torres (regional CE), Arquimedes Viegas Vale (MA) e Paulo Afonso Correia de Paiva (PE).


VASSOURA DE SOMBRAS


            Naquele canto escuro sempre havia um resto de sol que uma vassoura de sombras varria para depois do poente ou para baixo do tapete, conforme o caso.

         Dependia até se era horário de verão, do fuso horário, das tinturas do dia e dos ventos alísios, quer sudeste, quer noroeste, aquele que balançasse mais, sacudindo canoas e veleiros ancorados na baía, naquele braço perdido de mar, antes da lua se tornar espelho daquele fim de tarde.

         Quase todo dia era essa a hora em que nos encontrávamos sem precisar marcar com antecedência, sentados nas pedras em poses pensativas de Rodin, imóveis esculturas embebidas no marulhar das ondas a beijar nossos pés descalços.

         E ali ficávamos permanentemente e, se possível, por toda eternidade, adiando aquele resto de sol teimando em não perder o calor e o brilho.

         Como anteparo de tudo isso, a noite lutava para se impor, para substabelecer seu negrume antes mesmo da vela acesa, do lampião a gás, das lamparinas a óleo, das lâmpadas de mercúrio. Para isso, delineava cada perfil nascido do lusco-fusco, da obscuridade incessante, a imaginação mórbida trazendo de volta o Monstro da Lagoa Negra, do Loch Ness ou Jack, o Estripador, tropeçando no chão pedregoso das docas do cais.

         Só depois, os primeiros fantasmas já acalmados, nos dispúnhamos a esticar as pernas e aspirar profundamente o ar marinho. Só ainda depois, bem depois, as palavras se decompunham sussurradas, indefinidas, descosturando o silêncio. Só então a conversa se fazia presente, integrada à paisagem escura e à harmonia incessante da rouquidão das profundezas do mar, da superfície feita de espumas, descolando a areia de seu berço mole e áspero, amparada por cacos de conchas e escamas abandonadas ao movimento das marés e ao gosto do sal.

         Foi justamente nesta fugaz interposição da noite que, num repente, me deparei com a verdade dos seus olhos de um jeito como nunca tinha visto antes. Um instante de desproteção, uma espécie de estrabismo da alma, fortaleza logo retomada, imediatamente recuperada, prontamente revestida da máscara de sempre, como aquele resto de sol teimando resistir a uma vassoura de sombras. Tive a certeza que naquele momento eu amei e amei como nunca tinha amado, como nunca sonhara amar. Ver como nunca tinha visto. Romper com os limites entre dia e noite, terra e mar, mar e pedra, pedra e areia.

         Há resposta para isso ou só perguntas?  Me explique. Transcendência simplesmente? Exacerbação tipicamente romântica?  Utopia escancarada? Um acontecimento banal sequer arranhando o cotidiano? Uma fotografia em preto e branco? Ou a indescritível sensação do sentimento humano mais profundo, espelho de nós mesmos, neste mergulho abissal de sombra e luz?


SÈRGIO PERAZZO

Prêmio Flerts Nebó Melhor Prosa 2019 

ENTRELINHAS

 Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.” (Clarice Lispector (1920-1977), escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira.)


       Aprendemos que linhas paralelas jamais se cruzam quer dispostas a milhares ou milhões de quilômetros uma da outra, quer a frações de milímetros. Assim são as imaginárias linhas da macroestrutura do globo terrestre – do Equador; dos Trópicos de Capricórnio e de Câncer; e dos círculos polares Ártico e Antártico. Todavia caminhem lado a lado solitárias, quando próximas, ao mesmo tempo se tornam solidárias em suas
origens, em seus misteres e em seus fins.

Embora intangíveis, as linhas paralelas delimitam um espaço entre elas significativo, que não deve se confundido com o vazio do vácuo. Nele podem conter verdades explícitas, bem como albergar segredos inconfessos.

Não é difícil imaginar ao contemplar uma página de um caderno em branco, onde contém apenas um conjunto de linhas paralelas na direção horizontal, a quantidade de informações, lamúrias, suspiros, manifestações de ódio e de amor... que podem, pela mão do artista – escritor ou poeta –, preencher e adornar aquelas entrelinhas. Neste caso as linhas paralelas servem não somente de esteio a que se consigne um enredo, mas, tais quais as margens de um rio, acenam para manifestar uma origem... uma razão... um porquê, assim como conduzem o leitor a um destino... a um desfecho... a uma mensagem.

Certa feita, perguntado sobre como era criar uma obra de arte, o genial escultor, pintor, poeta e arquiteto italiano Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475- 1564), mais conhecido simplesmente como Michelangelo, humildemente respondeu:

“Dentro da pedra já existe uma obra de arte. Eu apenas tiro o excesso de mármore!”.

Se o escultor tira o excesso ou o supérfluo de um bloco de mármore ou de um tosco tronco de madeira para extrair e bem evidenciar a sua arte; o escritor escolhe, acrescenta, justapõe, contrapõe, coteja e concatena palavras, frases e parágrafos para melhor expressar suas ideias e sentimentos, compondo sua obra, dando vida e cores às imaginações contidas nas entrelinhas.

No conjunto de um texto, entrelinhas com poucas palavras ou frases, ou ainda que vazias, não deixam de indicar uma trégua... uma suposição... uma interpelação... uma reflexão... uma mudança de rota... um retorno ao passado ou uma projeção ao futuro.

Sim, as entrelinhas não são inermes ou não estão mortas. Por vezes hibernam à espera de alguém que as preencha, que as alimente. As entrelinhas falam! Elas se comunicam! Elas têm expressão viva e multicolorida não somente na razão direta da arte do escritor, mas também na destreza da introspecção do leitor. Quanto mais sensível ele for... quanto mais inserido no contexto ele estiver – verdadeira transposição ou transmutação de si na realidade que se lhe apresenta –, mais depreenderá e mais usufruirá a mensagem do autor através de suas entrelinhas.

Por entre as entrelinhas preenchidas, concatenada e parcimoniosamente com o cinzel da palavra escrita, estão contidos verdadeiros oceanos de informações, de conceitos, de encantos e de desalentos. Por elas não somente se alimenta a razão, mas também se aguçam os sentimentos e se descortina a vida!

Nas entrelinhas encontram-se também magistral e tacitamente os subentendidos.

Fábio José de Melo Silva, mais conhecido por Fábio de Melo (1971-), sacerdote, escritor e professor universitário, tem um pensamento que bem se aplica nesse particular: “Nas entrelinhas é que dizemos. Bom terapeuta é o que escuta o que omitimos”.

São nas entrelinhas que se encontram o substrato físico do exercício da arte de escrever. Se os trilhos de um trem determinam a origem e o destino de uma composição, são nas entrelinhas de um texto que se encontram – independentemente de seu tamanho –, o desenrolar de um propósito com início, meio e fim, ou até mesmo condensada toda uma saga de um acontecimento notório.

Nas entrelinhas transitam livremente o consciente e o inconsciente; o real e o fantasioso; o verdadeiro e o falso; o pessimismo e o auspicioso; o lógico e o inconsequente; o amor e a ira; o erudito e o chulo; o mensurável e o colossal; o explícito e o suposto; o cronológico e o anacrônico; o real e o fictício; o extraordinário e o banal; o atual e o extemporâneo; a razão e a abstração; o presente, o passado e o futuro!

Aduzo, uma vez mais, um pensamento lapidar e oportuno da renomada Clarice Lispector, já evidenciada em epígrafe: “Tudo acaba, mas o que te escrevo continua. O melhor está nas entrelinhas”.

Assim, nas entrelinhas os escritores não somente são evidenciados, mas também ressuscitados e até eternizados; assumem a ribalta; seguram a batuta; protagonizam o espetáculo; adquirem voz e vez; ecoam suas ideias; são calmamente escutados; avaliados e julgados: glorificados ou repudiados, aplaudidos ou vaiados, mas, sem dúvida alguma, exercem a cidadania e a liberdade de expressão no areópago do tempo!

HÉLIO BEGLIOMINI

Primeira Menção Honrosa doa Prêmio Flerts Nebó 2019

 

 

HISTÓRIA DE UM CORDÃO DE SAPATO


 (Para Clara)

 Tudo tem história. O marreco de madeira em cima do piano, presente de aniversário. O pote de louça na bancada da cozinha, vestígio de uma feirinha de praia de um verão impecável. A correntinha de ouro com santinha pendurada no pescoço, lembrança da madrinha diluída no tempo. Afeto por afeto, carinho por carinho meio embaçado pelos anos, entrevistos pelo vão da tampa da mala de caixeiro-viajante, aquela de fecho quebrado, ainda ostentando o selo turístico do destino de sua última viagem. Um pequeno gesto, um passo em falso, a chuva que caía, o sono que não vinha, o sonho sem desfecho. Tudo tem história.

 Sim, chovia. Não muito, mas chovia. O suficiente para molhar duas pessoas, pai e filha, abrigando-se no mesmo e único guarda-chuva na saída do restaurante e a caminho do estacionamento.

 Nada foi dito, mesmo porque aconteceu muito rápido e durou toda eternidade.

Antes de se abaixar passou gentilmente o guarda-chuva ao pai, abaixou-se sem qualquer previsão e esforço e amarrou o cordão da botinha de camurça do pé direito do pai que estava desamarrado, sem que ninguém tivesse notado, essa música sem orquestra com todos os acordes perfeitamente encaixados. Feito isso, levantou-se e retomou o guarda-chuva dos dois rumo ao pátio do estacionamento.

 A tal botinha estava há anos guardada na prateleira inferior do armário embutido, surpreendentemente ainda nova, mas com um dos cordões meio esgarçado e meio roído, mastigado. Ir ao sapateiro, nem longe era, comprar um novo foi sendo adiado e adiado por pura preguiça, por puro esquecimento, como fazemos com tantas coisas que acabam abandonadas e condenadas ao degredo da memória por pequenos detalhes triviais ou achadas no fundo de uma caixa de papelão em caminhão de mudanças.

 O cordão, que comprei, enfim, por impulso, era novo, portanto, e de vez em quando escorregava sozinho e desamarrava o sapato. Foi numa dessas que a filha notou o pé desamarrado na saída do tal restaurante. Vocês já devem ter adivinhado que o pai e a filha dessa história, sou eu e minha filha na vida real. Daí a dificuldade de transmitir tudo que senti naquele momento abençoado.

 Primeiro, a naturalidade em cuidar de mim sem que eu soubesse, sem que eu pedisse, eu que na vida, já virou mania, estou sempre cuidando dos outros, dentro e fora da profissão. Segundo, porque não me pediu licença e agiu com a naturalidade e confiança de que eu precisava ser cuidado como algo que simplesmente é assim. Faz parte do ciclo vital. Terceiro, porque estou envelhecendo e preciso de ajuda para viver, para tentar entender e me adaptar a este mundo digital que me desafia a todo momento e, por isso mesmo, dependo até de um simples cordão de sapato.

 Mas o que não dá para descrever, por mais que eu tente, porque é coisa entre eu e ela, é a magia do momento, repito, a naturalidade absoluta como tudo aconteceu. Ali, para mim, mudou a vida. Valeu a pena viver tudo de bom e de ruim durante toda a minha limitada existência, para alcançar este momento que resume tudo, tudo que dois seres humanos podem viver entre si, indelével como uma tatuagem mapeando o corpo e delineando a alma sem qualquer maquiagem, pura entrega sem qualquer estardalhaço, um toque de magia da mão da artista amarradora de sapatos em plena concepção da arte como significado em si mesmo ou como o achado da beleza pura.

Uma virada de jogo amarrando a vida com o novo cordão de sapato num simples gesto de amarrar a síntese de um e de outro, o gesto de amor mais bem acabado que envolve a aceitação plena de todas as diferenças e todas as afinidades ocultas no fundo de cada um de nós, um mergulho nas alturas, na alma de todas as coisas, sem túnel de vento e sem paraquedas.

SÉRGIO PERAZZO

Segunda Menção Honrosa Prêmio Flerts Nebó 2019

 

PRÊMIO BERNARDO DE OLIVEIRA MARTINS 2019

 Na Pizza Literária on line de 18 de março de 2021, foi entregue o Prêmio Bernardo de Oliveira Martins de 2019 para a poesia “Ecos Poéticos” de Márcia Etelli Coelho. Houve um empate para a Primeira Menção Honrosa: Luiz Jorge Ferreira (Berro Verde) e Márcia Etelli Coelho (Brumadinho). A Segunda Menção Honrosa destinou-se a Luiz Jorge Ferreira (Guardanapo Lilás).

Nossa gratidão aos avaliadores: Helena Lúcia Sória (PR), Luiz Coutinho Dias Filho (PE) e Hilmar Ribeiro Hortegal (MA). 


ECOS POÉTICOS



Às vezes quando escrevo eu escuto um eco

Ora forte como bichos em fuga,

ora tênue como um canto tristonho.

Não vem do abismo no meio da rua

nem da montanha que encontro em sonhos.

 

Quando o mar sem ondas conhece

o silêncio de ser vespertino,

é aí que ele, de novo, aparece,

despontando, não sei, de qual ninho.

 

Então eu escrevo, lavro palavras,

recrio um mundo, colho ilusões.

Diário de dúvidas, riscos, erratas,

parágrafos plenos de indagações.

 

Eu pergunto e Deus... ou não responde

ou sou eu que não entendo os sinais.

Mas o eco, de certo, sempre me ouve

desde o tempo em que existiam quintais.

 

As palavras ecoam alentos... lentos...

Eu escrevo e a dor descompassa... passa...

pois escuto ao findar o chamado

és amado... amado... amado...


MÁRCIA ETELLI COELHO

Prêmio Bernardo de Oliveira Martins  Melhor Poesia 2019


BERRO VERDE


O berro do Rio, berrou.

As águas o casco abriu.

A chuva cuidou caiu.

O seco calor suou.

Nas pedras Caldeira a pé.

Deitou a vez de andar.

Amanheceu ar no ar.

E se fez Belém do Verde.

Belém...Pedreira...Guamá.

O Rio barrentou o mar.

Pariu Tajá Marajó.

A Régia do meu Pará, banhando em Icoaraci.

Mangueira a se embriagar, embala daqui p'ra'li...

um sonho bom de chegar, açaizal açaí.

O Bar Quiosque a beber a Paz que o Teatro tem.

A Cobra Grande no Porto, o Carmo da Cabanagem.

O sal e a Sé não esquecem o Cirio longo dos passos.

Sob o mormaço, maré, maré de gente vazante, pororocando,minguante.

A rua antiga cidade, Batista Campos maior.

Cantando com o Boto Preto, o canto do Sabiá.

O Forte chora verdade nas águas do Guajará,

do céu um azul azul encobre cascos e velas da 'Deusa de Áfua'...

Outeiro, Mosqueiro e o Largo, refletem Luar no Bosque...

Morena vem Ver-o-Peso, beber na cuia teus sonhos, lamber a ponta dos dedos...

Amando o verde que cerca, o verde que cerca o verde.

Belém desta rua Alfredo, cantando prosas sorri...

Nas sestas do mano amigo, o papachibe querido.

No São João, as passaradas, cantigas, caranguejada.

Momo Gordo, Carimbo!

Paid'égua que eu sou daqui.

Paid'égua que eu sou daqui.


LUIZ JORGE FERREIRA

Menção Honrosa do Prêmio Bernardo de Oliveira Martins 2019


BRUMADINHO


Repouse seu corpo em meus braços e ouça 

 rio de lama a correr sem aviso,

rompendo barragens, furor displicente,

abrindo o chão, arrastando abrigos,

rejeitando o futuro, abolindo o presente.

 

Ouça o rude trincar de mil casas,

ceifando as sementes de todo  jardim.

Ouça o choro dos anjos sem asas

que nem perceberam que ali era o fim.

 

Ouça os últimos suspiros de vida,

tão dentro da terra, tão longe dos seus.

Ouça os gritos soltos de quem alucina.

Sequer houve tempo de orar pro seu Deus.

 

Ouça o lamento do céu que previa

a dor de quem perde e não encontra mais.

Ouça a tristeza das almas perdidas,

voando e deixando seus sonhos pra trás.


MÁRCIA ETELLI COELHO

Menção Honrosa do Prêmio Bernardo de Oliveira Martins 2019

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