sábado, 20 de março de 2021

HISTÓRIA DE UM CORDÃO DE SAPATO


 (Para Clara)

 Tudo tem história. O marreco de madeira em cima do piano, presente de aniversário. O pote de louça na bancada da cozinha, vestígio de uma feirinha de praia de um verão impecável. A correntinha de ouro com santinha pendurada no pescoço, lembrança da madrinha diluída no tempo. Afeto por afeto, carinho por carinho meio embaçado pelos anos, entrevistos pelo vão da tampa da mala de caixeiro-viajante, aquela de fecho quebrado, ainda ostentando o selo turístico do destino de sua última viagem. Um pequeno gesto, um passo em falso, a chuva que caía, o sono que não vinha, o sonho sem desfecho. Tudo tem história.

 Sim, chovia. Não muito, mas chovia. O suficiente para molhar duas pessoas, pai e filha, abrigando-se no mesmo e único guarda-chuva na saída do restaurante e a caminho do estacionamento.

 Nada foi dito, mesmo porque aconteceu muito rápido e durou toda eternidade.

Antes de se abaixar passou gentilmente o guarda-chuva ao pai, abaixou-se sem qualquer previsão e esforço e amarrou o cordão da botinha de camurça do pé direito do pai que estava desamarrado, sem que ninguém tivesse notado, essa música sem orquestra com todos os acordes perfeitamente encaixados. Feito isso, levantou-se e retomou o guarda-chuva dos dois rumo ao pátio do estacionamento.

 A tal botinha estava há anos guardada na prateleira inferior do armário embutido, surpreendentemente ainda nova, mas com um dos cordões meio esgarçado e meio roído, mastigado. Ir ao sapateiro, nem longe era, comprar um novo foi sendo adiado e adiado por pura preguiça, por puro esquecimento, como fazemos com tantas coisas que acabam abandonadas e condenadas ao degredo da memória por pequenos detalhes triviais ou achadas no fundo de uma caixa de papelão em caminhão de mudanças.

 O cordão, que comprei, enfim, por impulso, era novo, portanto, e de vez em quando escorregava sozinho e desamarrava o sapato. Foi numa dessas que a filha notou o pé desamarrado na saída do tal restaurante. Vocês já devem ter adivinhado que o pai e a filha dessa história, sou eu e minha filha na vida real. Daí a dificuldade de transmitir tudo que senti naquele momento abençoado.

 Primeiro, a naturalidade em cuidar de mim sem que eu soubesse, sem que eu pedisse, eu que na vida, já virou mania, estou sempre cuidando dos outros, dentro e fora da profissão. Segundo, porque não me pediu licença e agiu com a naturalidade e confiança de que eu precisava ser cuidado como algo que simplesmente é assim. Faz parte do ciclo vital. Terceiro, porque estou envelhecendo e preciso de ajuda para viver, para tentar entender e me adaptar a este mundo digital que me desafia a todo momento e, por isso mesmo, dependo até de um simples cordão de sapato.

 Mas o que não dá para descrever, por mais que eu tente, porque é coisa entre eu e ela, é a magia do momento, repito, a naturalidade absoluta como tudo aconteceu. Ali, para mim, mudou a vida. Valeu a pena viver tudo de bom e de ruim durante toda a minha limitada existência, para alcançar este momento que resume tudo, tudo que dois seres humanos podem viver entre si, indelével como uma tatuagem mapeando o corpo e delineando a alma sem qualquer maquiagem, pura entrega sem qualquer estardalhaço, um toque de magia da mão da artista amarradora de sapatos em plena concepção da arte como significado em si mesmo ou como o achado da beleza pura.

Uma virada de jogo amarrando a vida com o novo cordão de sapato num simples gesto de amarrar a síntese de um e de outro, o gesto de amor mais bem acabado que envolve a aceitação plena de todas as diferenças e todas as afinidades ocultas no fundo de cada um de nós, um mergulho nas alturas, na alma de todas as coisas, sem túnel de vento e sem paraquedas.

SÉRGIO PERAZZO

Segunda Menção Honrosa Prêmio Flerts Nebó 2019

 

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