(Para Clara)
Sim, chovia. Não muito, mas chovia. O suficiente
para molhar duas pessoas, pai e filha, abrigando-se no mesmo e único
guarda-chuva na saída do restaurante e a caminho do estacionamento.
Nada foi dito, mesmo porque aconteceu muito
rápido e durou toda eternidade.
Antes de se
abaixar passou gentilmente o guarda-chuva ao pai, abaixou-se sem qualquer previsão
e esforço e amarrou o cordão da botinha de camurça do pé direito do pai que estava
desamarrado, sem que ninguém tivesse notado, essa música sem orquestra com todos
os acordes perfeitamente encaixados. Feito isso, levantou-se e retomou o guarda-chuva
dos dois rumo ao pátio do estacionamento.
A tal botinha estava há anos guardada na
prateleira inferior do armário embutido, surpreendentemente ainda nova, mas com
um dos cordões meio esgarçado e meio roído, mastigado. Ir ao sapateiro, nem
longe era, comprar um novo foi sendo adiado e adiado por pura preguiça, por puro
esquecimento, como fazemos com tantas coisas que acabam abandonadas e
condenadas ao degredo da memória por pequenos detalhes triviais ou achadas no
fundo de uma caixa de papelão em caminhão de mudanças.
O cordão, que comprei, enfim, por impulso, era
novo, portanto, e de vez em quando escorregava sozinho e desamarrava o sapato.
Foi numa dessas que a filha notou o pé desamarrado na saída do tal restaurante.
Vocês já devem ter adivinhado que o pai e a filha dessa história, sou eu e
minha filha na vida real. Daí a dificuldade de transmitir tudo que senti
naquele momento abençoado.
Primeiro, a naturalidade em cuidar de mim sem
que eu soubesse, sem que eu pedisse, eu que na vida, já virou mania, estou
sempre cuidando dos outros, dentro e fora da profissão. Segundo, porque não me
pediu licença e agiu com a naturalidade e confiança de que eu precisava ser
cuidado como algo que simplesmente é assim. Faz parte do ciclo vital. Terceiro,
porque estou envelhecendo e preciso de ajuda para viver, para tentar entender e
me adaptar a este mundo digital que me desafia a todo momento e, por isso
mesmo, dependo até de um simples cordão de sapato.
Mas o que não dá para descrever, por mais que
eu tente, porque é coisa entre eu e ela, é a magia do momento, repito, a
naturalidade absoluta como tudo aconteceu. Ali, para mim, mudou a vida. Valeu a
pena viver tudo de bom e de ruim durante toda a minha limitada existência, para
alcançar este momento que resume tudo, tudo que dois seres humanos podem viver
entre si, indelével como uma tatuagem mapeando o corpo e delineando a alma sem
qualquer maquiagem, pura entrega sem qualquer estardalhaço, um toque de magia
da mão da artista amarradora de sapatos em plena concepção da arte como
significado em si mesmo ou como o achado da beleza pura.
Uma virada de jogo
amarrando a vida com o novo cordão de sapato num simples gesto de amarrar a
síntese de um e de outro, o gesto de amor mais bem acabado que envolve a
aceitação plena de todas as diferenças e todas as afinidades ocultas no fundo de
cada um de nós, um mergulho nas alturas, na alma de todas as coisas, sem túnel
de vento e sem paraquedas.
SÉRGIO PERAZZO
Segunda Menção Honrosa Prêmio Flerts Nebó 2019
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