Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.” (Clarice Lispector (1920-1977), escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira.)
Aprendemos que linhas paralelas jamais se cruzam quer dispostas a milhares ou milhões de quilômetros uma da outra, quer a frações de milímetros. Assim são as imaginárias linhas da macroestrutura do globo terrestre – do Equador; dos Trópicos de Capricórnio e de Câncer; e dos círculos polares Ártico e Antártico. Todavia caminhem lado a lado solitárias, quando próximas, ao mesmo tempo se tornam solidárias em suasorigens, em seus misteres e em seus fins.
Embora intangíveis,
as linhas paralelas delimitam um espaço entre elas significativo, que não deve
se confundido com o vazio do vácuo. Nele podem conter verdades explícitas, bem
como albergar segredos inconfessos.
Não é difícil
imaginar ao contemplar uma página de um caderno em branco, onde contém apenas
um conjunto de linhas paralelas na direção horizontal, a quantidade de
informações, lamúrias, suspiros, manifestações de ódio e de amor... que podem,
pela mão do artista – escritor ou poeta –, preencher e adornar aquelas entrelinhas.
Neste caso as linhas paralelas servem não somente de esteio a que se consigne
um enredo, mas, tais quais as margens de um rio, acenam para manifestar uma
origem... uma razão... um porquê, assim como conduzem o leitor a um destino...
a um desfecho... a uma mensagem.
Certa feita,
perguntado sobre como era criar uma obra de arte, o genial escultor, pintor,
poeta e arquiteto italiano Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475- 1564),
mais conhecido simplesmente como Michelangelo, humildemente respondeu:
“Dentro da pedra
já existe uma obra de arte. Eu apenas tiro o excesso de mármore!”.
Se o escultor tira
o excesso ou o supérfluo de um bloco de mármore ou de um tosco tronco de
madeira para extrair e bem evidenciar a sua arte; o escritor escolhe, acrescenta,
justapõe, contrapõe, coteja e concatena palavras, frases e parágrafos para melhor
expressar suas ideias e sentimentos, compondo sua obra, dando vida e cores às imaginações
contidas nas entrelinhas.
No conjunto de um
texto, entrelinhas com poucas palavras ou frases, ou ainda que vazias, não
deixam de indicar uma trégua... uma suposição... uma interpelação... uma
reflexão... uma mudança de rota... um retorno ao passado ou uma projeção ao futuro.
Sim, as
entrelinhas não são inermes ou não estão mortas. Por vezes hibernam à espera de
alguém que as preencha, que as alimente. As entrelinhas falam! Elas se comunicam!
Elas têm expressão viva e multicolorida não somente na razão direta da arte do
escritor, mas também na destreza da introspecção do leitor. Quanto mais sensível
ele for... quanto mais inserido no contexto ele estiver – verdadeira
transposição ou transmutação de si na realidade que se lhe apresenta –, mais
depreenderá e mais usufruirá a mensagem do autor através de suas entrelinhas.
Por entre as entrelinhas
preenchidas, concatenada e parcimoniosamente com o cinzel da palavra escrita,
estão contidos verdadeiros oceanos de informações, de conceitos, de encantos e
de desalentos. Por elas não somente se alimenta a razão, mas também se aguçam
os sentimentos e se descortina a vida!
Nas entrelinhas
encontram-se também magistral e tacitamente os subentendidos.
Fábio José de Melo
Silva, mais conhecido por Fábio de Melo (1971-), sacerdote, escritor e
professor universitário, tem um pensamento que bem se aplica nesse particular:
“Nas entrelinhas é que dizemos. Bom terapeuta é o que escuta o que omitimos”.
São nas
entrelinhas que se encontram o substrato físico do exercício da arte de escrever.
Se os trilhos de um trem determinam a origem e o destino de uma composição, são
nas entrelinhas de um texto que se encontram – independentemente de seu tamanho
–, o desenrolar de um propósito com início, meio e fim, ou até mesmo condensada
toda uma saga de um acontecimento notório.
Nas entrelinhas
transitam livremente o consciente e o inconsciente; o real e o fantasioso; o
verdadeiro e o falso; o pessimismo e o auspicioso; o lógico e o inconsequente;
o amor e a ira; o erudito e o chulo; o mensurável e o colossal; o explícito e o
suposto; o cronológico e o anacrônico; o real e o fictício; o extraordinário e
o banal; o atual e o extemporâneo; a razão e a abstração; o presente, o passado
e o futuro!
Aduzo, uma vez
mais, um pensamento lapidar e oportuno da renomada Clarice Lispector, já
evidenciada em epígrafe: “Tudo acaba, mas o que te escrevo continua. O melhor
está nas entrelinhas”.
Assim, nas entrelinhas os escritores não somente são evidenciados, mas também ressuscitados e até eternizados; assumem a ribalta; seguram a batuta; protagonizam o espetáculo; adquirem voz e vez; ecoam suas ideias; são calmamente escutados; avaliados e julgados: glorificados ou repudiados, aplaudidos ou vaiados, mas, sem dúvida alguma, exercem a cidadania e a liberdade de expressão no areópago do tempo!
HÉLIO BEGLIOMINI
Primeira Menção Honrosa doa Prêmio Flerts Nebó 2019
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