O monstro do ralo tropeçou na tampa do bueiro. Entupiu todas as bocas-de-lobo daquele pedaço de rua, antecipando enchentes de chuvas de verão, daquelas ensopadas em fim de tarde.
Segundo as más
línguas, foi parar bem no meio da sala em plena novena na casa da Tiburcinha.
O monstro do
ralo é endêmico nas favelas que rodeiam o Golfo de Bengala. Quase invencível,
só é enfrentado pelo Fantasma-que-anda, pelo seu inseparável cão-lobo Capeto e
a escolta de pigmeus que guarda a entrada da Gruta da Caveira.
O monstro do
ralo nos pega desprevenidos, quando menos a gente espera, que nem comerciais
borbulhantes de remédio para dispepsia, entre sorridentes promessas de bem-estar
de companhias de investimentos, de crédito e de seguros, de enriquecimento
milagroso e imediato; anúncios de carros zero da mais alta tecnologia on-line;
e modelos vestindo dioríssimos e cruzando as pernas em sensuais ofertas de
produtos de maquiagem capazes de remoçar a mais cruel herança do tempo e suas
escavações botóxicas nas maçãs do rosto.
O monstro do
ralo é assim mesmo sem sentido claro e, por isso mesmo, indefinido e
indecifrável. Mais que um monstro é um estado de espírito, um mal-estar assim
como uma TPM insinuante. A TPM tendo, pelo menos, uma data mensal provável a
ser cumprida e esperada. Um endereço endócrino-fisiológico conhecido e até
certo ponto previsível.
Vou tentar dar
um exemplo para que vocês possam reconhecê-lo mais facilmente quando cruzarem o
seu caminho, juntando coragem e disposição para enfrentá-lo de mãos limpas e
não deixá-lo se transformar em deprê de tonelagem de pandemia à qual a gente
acaba se acostumando. Passa a ser interminável a contagem dos dias e a
recontagem das tarefas domésticas repetitivas que se empilham infinitamente,
como botar o lixo fora e a água suja na pia.
Imaginem um
telhado de ardósia e paredes de biscoitos de chocolate da casa da bruxa de João
e Maria. Acrescente uma floresta encantada, povoada de elfos, ninfas e anjos
natalinos conduzindo renas. Cenário encantado de felicidade impecável de
sinfonia romântica em dó maior, quase perfeita. E quando tudo está preparado
para um desfecho de happy end forever, bem na hora de viver a realidade de um
sonho, lá vem o monstro do ralo engasgando em si mesmo, se arrastando e
gorgolejando o encanamento.
Sim, porque o
monstro do ralo não é um, não são dois, nem são três, é uma rede de encanamento
subterrâneo com bilhões de ramificações. Entra em todas as casas, pesa e
entristece todos os corações, mesmo porque o que a princípio parece, nada se
torna de indefinível a um resultado de uma lei de vasos comunicantes, de
penetrar nas casas não se sabe ao certo de onde, de que chaminés, sombreando
almas e corações, esvaziando o sentido das coisas. Quando se vê, estamos
submersos num fluido sem forma, tomado pelo nojo de um clima em que algo de
ruína se faz presente, não se sabe de onde nem por que. Esse monstro do ralo
que se insinua sem ser chamado está aí espiando por trás do seu ombro esquerdo
nessa luta constante de fixar no dia a dia cada momento de felicidade capaz de
não deixar escoar pelo ralo, pela fresta das ilusões, pelo sentido de ser
humano, de ser tão pequeno diante de tal universo.
Talvez
entrecortados de soluços e gorgolejos, à espera de ouvir de novo a gargalhada
franca que se desenrola em ondas. Como o tapete persa do corredor, tão mágico
quanto o de Aladim, tão voador quanto à sucessão de mil e duas noites em 365
dias, estrela acrescentada ao mapa do Oriente, a dissipar tempestades de areia
e a escuridão que nasce e morre do lado de lá ao se fechar a janela com três
voltas da chave.
Sérgio Perazzo
Primeira Menção
Honrosa – Prêmio Flerts Nebó 2021
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