quinta-feira, 27 de outubro de 2022

UM RESPINGO DE MEMÓRIA

             Pneu no lamaçal escorregadio sem tração na roda é abismo certo sem volta, né não? É como contar e recontar a mesma história de frente pra trás, de trás pra diante. Dados viciados na mesa, sempre o mesmo jogo, o mesmo sete, acabando em empurrão e xingamento.

         Se dez vezes arrumou a mala para sair de casa, dez vezes não passou do portão. A mesma ameaça e a mesma gastura de juras de amor, de mala feita, dizendo que dessa vez é pra valer, dessa vez eu vou mudar. E ficava esperando, esperando, esperando milagre da ressurreição, da partilha do peixe e do pão, no fim da tempestade no Monte das Oliveiras, olha só, lamaçal e azeitonas.

         Dessa vez, o pretexto foi o modo novo de pentear o cabelo antigo, como podia ser o comprimento da saia ou o jeito de enrolar o cachecol no pescoço, a seus olhos provocante, tendo no nó macio de lã um quê de uma intenção suicida, nó de caixas de surpresas, surpresas rasgáveis de papel, velhas cartas de amor de tintas desbotadas, versos de rimas pobres, restos requentados de paixão barata, ameaça velada ou explícita de um sequestro fixando o valor do resgate.

         Qual! Ninguém sabia mais em que ou em quem acreditar, se na repetição da frase “ eu te amo, eu te amo”, a essa altura totalmente desmoralizada, repetida como uma imagem de um espelho rachado e atirado na parede com quase nenhuma força, um ponto e vírgula nas reconciliações de quintal entre beijos úmidos e a volta insistente do tédio no intervalo do amor esquecido em algum canto, amparado pela meia dúzia das latinhas de cerveja dos domingos mal vividos e malpassados, desenhados a batom e rímel escorrido.

         Mas não era o caso, ou era mesmo da vida, se repetida até o miolo do tédio, algo assim como uma pandemia, assim como a consciência impositiva da morte, assim como quem a gente escolhe por companhia dessa jornada. Como chamar tudo isso de jornada, um nome tão gasto, tão repetitivo, pneu em lamaçal à procura de uma metáfora menos pessimista. E como Drummond: “... abre o frasco de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória”.

 

Sérgio Perazzo

Prosa Vencedora do Prêmio Flerts Nebó 2021

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