Pneu no lamaçal escorregadio sem tração na roda é abismo certo sem volta, né não? É como contar e recontar a mesma história de frente pra trás, de trás pra diante. Dados viciados na mesa, sempre o mesmo jogo, o mesmo sete, acabando em empurrão e xingamento.
Se dez vezes arrumou a mala para sair
de casa, dez vezes não passou do portão. A mesma ameaça e a mesma gastura de
juras de amor, de mala feita, dizendo que dessa vez é pra valer, dessa vez eu
vou mudar. E ficava esperando, esperando, esperando milagre da ressurreição, da
partilha do peixe e do pão, no fim da tempestade no Monte das Oliveiras, olha
só, lamaçal e azeitonas.
Dessa vez, o pretexto foi o modo novo
de pentear o cabelo antigo, como podia ser o comprimento da saia ou o jeito de
enrolar o cachecol no pescoço, a seus olhos provocante, tendo no nó macio de lã
um quê de uma intenção suicida, nó de caixas de surpresas, surpresas rasgáveis
de papel, velhas cartas de amor de tintas desbotadas, versos de rimas pobres,
restos requentados de paixão barata, ameaça velada ou explícita de um sequestro
fixando o valor do resgate.
Qual! Ninguém sabia mais em que ou em
quem acreditar, se na repetição da frase “ eu te amo, eu te amo”, a essa altura
totalmente desmoralizada, repetida como uma imagem de um espelho rachado e
atirado na parede com quase nenhuma força, um ponto e vírgula nas
reconciliações de quintal entre beijos úmidos e a volta insistente do tédio no
intervalo do amor esquecido em algum canto, amparado pela meia dúzia das
latinhas de cerveja dos domingos mal vividos e malpassados, desenhados a batom
e rímel escorrido.
Mas não era o caso, ou era mesmo da
vida, se repetida até o miolo do tédio, algo assim como uma pandemia, assim
como a consciência impositiva da morte, assim como quem a gente escolhe por
companhia dessa jornada. Como chamar tudo isso de jornada, um nome tão gasto,
tão repetitivo, pneu em lamaçal à procura de uma metáfora menos pessimista. E
como Drummond: “... abre o frasco de loção e abafa o insuportável mau cheiro da
memória”.
Sérgio Perazzo
Prosa Vencedora do Prêmio Flerts Nebó
2021
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