quinta-feira, 27 de outubro de 2022

COMEMORAÇÃO FECUNDA

         Ele sentou-se no chão, com a cabeça pendida entre as pernas semi-fletidas e semi-abertas, sentiu o suor escorrer-lhe pelas costas, pelo peito, pela cara. Da camisa vertia uma pasta de suor com areia. 

Tirou o chapéu que balançava por sobre seus cabelos molhados, coçou a cabeça, voltou o chapéu e, com as costas da mão, limpou o canto da boca. 

Sentiu o gosto salgado do suor misturado com terra e cuspiu. Um cuspe de pouca saliva e visguento, que mal lhe saiu da boca e foi cair perto de si. 

Olhou para as estacas de cerca; teria que fazer bem uma meia dúzia de buracos, cada qual com setenta centímetros de profundidade e duas cavadeiras de largura. Olhou para as mãos: sujas, grossas, calosas, cheias de gretas; instantaneamente voltou o olhar para uma lasca de aroeira perto de si e cismou. 

- Aquele pedaço de pau é mais liso que minha mão. 

Puxou a cavadeira para perto de si, esfregou o cabo, e percebeu o quanto ele estava liso, era até brilhante de tão liso. 

Havia sido lixado com a aspereza de sua mão. 

Ele era um forte, os objetos adaptavam-se ao seu ao jeito, e ele adaptava-se aos objetos. Estava quase virando um objeto. Há muito tempo deixara de pensar, só executava. A sua vida era fazer, só fazer...um fazer, lento, devagar, suado, sofrido, cansado. 

Sentiu a barriga roncar, andava sempre com a barriga vazia; mesmo nas refeições, ainda que tivesse comida à vontade: comia pouco. Barriga cheia demais atrapalha o trabalho, não rendia o serviço e sentia-se mal; por isso, andava sempre com a barriga roncando. 

Levantou-se, olhou para sua sombra no chão e calculou: dez horas da manhã, talvez nem tanto, aquela cerca não ficaria pronta tão facilmente... 

Contou dois passos largos e marcou o local da outra estaca de aroeira, bateu a cavadeira no chão seco e duro, e ela resvalou, tirando uma casquinha fina de terra. 

Repetiu esse gesto centenas, milhares de vezes e, lentamente, a cerca de arame farpado fechou-se. 

Olhou para o rebanho magro, ossudo, desconsolado, bamboleante e juntos, ele e o gado, caminharam para aquele cercado novo. 

Uma rês tropeçou no caminho e caiu. Aquela não levantaria mais. Tentou por todos os meios movimentá-la, mas havia perdido toda a força para a luta da vida. Acabaria por morrer ali. 

Os urubus fizeram morada em suas terras, alguns pousavam no lombo dos animais. Estavam desaforados esses animais agourentos, carniceiros. 

Ele sentiu que, se tropeçasse, o mais fácil seria ficar imóvel e deixar a morte levar mais um corpo seco, naquela seca imensa. Até os urubus iam ter pouco para aproveitar. 

O sol tinha deixado no horizonte um vermelho amarronzado, via-se também uns fiapos de nuvens, distantes uns dos outros. Dirigiu-se para a casa com passos lentos, quase que empurrados pelo vento que se havia formado. 

Durante a noite, acordou com o barulho do vento, dos trovões e a claridade dos relâmpagos. Correu da cama para o quintal, e ficou com o corpo nu, da cintura para cima, exposto ao vento, vendo as nuvens pesadas por entre os raios, chegando-se cada vez mais. 

A chuva encontrou sua cara molhada de lágrimas; e, juntas, molharam aquele chão duro. 

O amanhecer o encontrou no centro de sua propriedade, andando por todos os cantos, tudo ganhava vida. 

Durante uma semana choveu todas as noites e, durante todos os dias, ele preparou sua terra. Arou, tombou, gradeou e semeou sua roça; se teve canseira, não sentiu, ou, se sentiu, não se lembrava. O chão foi ficando verde com sua plantação, até que não se via mais terra, era só verde, o verde de sua roça. 

Naquele dia, saiu de sua roça mais cedo e passou na cidade; comprou comida e bebida. 

Veio para casa mais prosa e o com riso frouxo de felicidade. A mulher e ele comeram, beberam e se amaram comemorando a vida, esquecidos da dor passada. 

No ano a seguir, além da colheita, colheram também um filho, presente de Deus e fruto do amor e confiança dos dois na vida. 

 

DELFIM SILVA PIRES

Segunda Menção Honrosa Prêmio Flerts Nebó

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