quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

UM QUADRO, MUITAS HISTÓRIAS



Por: Mário Santoro Junior
PEDIATRIA
mariosantorojunior@gmail.com

Ele ganhara aquele quadro. Presente de um paciente agradecido pelos préstimos profissionais recebidos. De fato, muito se dedicara àquele caso, de resto doença grave e que exigira sua atenção e o melhor de suas capacidades profissionais. De imediato simpatizou com o quadro, motivo que o levou a colocar em frente à sua poltrona predileta, naquele cantinho de sua casa, onde quase todos os dias sentava-se e descansava após o jantar coroando um dia, como sempre, de muito trabalho. Olhando para aquele quadro deixava flanar seus devaneios....
Foi assim que muitas histórias se sucederam. Num dia naquela casa, quase um casebre, como a percebia na imagem impressa naquela tela, morou uma família pobre, mas feliz. Com muita luta e trabalho sustentavam seu único filho para o qual sonhavam uma vida confortável, o que, de fato, veio a se suceder, pois hoje um advogado famoso. Noutro dia ali habitou uma viúva e seus vários filhos. O que o marido deixara mal dava para sobreviverem, mas ainda assim ela orava pela sua alma, pois embora pobres foram felizes enquanto ele esteve na sua vida. Noutro dia, aquela casa foi habitada por um indivíduo sem escrúpulos, quase um tirano que maltratava sua esposa e filhos. Também ali habitou um alcoólatra e que do mesmo modo desgraçava a vida daquela família.
Mas, teve dia que ali naquela casa há muito ninguém habitava e só almas errantes apareciam à noite, como para relembrar da tragédia que a toda família dizimou...
Também naquela igreja, muitas histórias se sucederam. Vidas que se uniram sob as bênçãos de Deus. Muitas assim continuaram, mas outras, apesar das juras de amor eterno, não sobreviveram ao tempo. Naquele confessionário quantos pecados foram contados e perdoados?  Crianças ali foram batizadas. Muitas vezes o pároco fora chamado para dar a extrema unção a um moribundo. E assim se assistia o começo e o fim desta vida terrena.
E aquele cavaleiro, personagem também daquele quadro, onde iria com tanta pressa? Por que a mulher o espreitava postada junto a casa?
Várias foram as histórias sobre eles. Em algumas elas se relacionavam com os personagens da casa ou da igreja. Em outra era só alguém de passagem naquele local, sem que se soubesse de onde vinha e para onde ia. Muitas vezes em seus devaneios imaginou um amor secreto entre aquela mulher e o cavaleiro que se afastava apressado. Seriam amantes? A sua pressa era na verdade uma fuga? Fugia do que ou de quem? Em outros devaneios aquela santa mulher apenas via seu marido, um homem honesto e trabalhador, montado no seu cavalo conduzir para um campo a tropa que naquele momento ia à sua frente.
E assim de histórias em histórias nasceu nele o desejo de ir conhecer aquele lugar que inspirara o autor que, com pinceladas firmes, transmitiu sua emoção àquela tela.  Como tinha espírito investigativo, ótimo clínico que era, logo chegou ao seu intento. Na primeira oportunidade pôs-se em marcha.
 Chegando ao local, uma área rural, não demorou em reconhecer os elementos da tela. Lá estavam o casebre, a igreja e todos os outros elementos circunstanciais tão bem representados naquela tela. Notou que, porém, faltavam o cavaleiro e o cavalo alazão. Passou um bom tempo absorto em seus pensamentos até que, porém, foi despertado por um caboclo montado em um velho burro.
Humildemente este lhe falou:
— Desculpe, moço. Vos mercê carece de alguma coisa?
Seria aquele burro o que imaginou ser um grande cavalo alazão?
E aquele caboclo seria o que sonhou ser um cavaleiro?
Em seguida o pobre caboclo, talvez impressionado com a postura altiva do seu interlocutor, disse:
— Não quer entrar e tomar uma xícara de café?
Diante do convite inesperado, hesitou e rapidamente se lembrou de um passado distante onde cultivou durante muito tempo um amor platônico que desapareceu quando conheceu a realidade triste e cruel que a jovem amada carregava. Havia desaparecido toda a magia daquele amor que, até então, só ele sabia que existia. Por muito tempo guardou marcas desta decepção. Pensando que ao adentrar àquela casa poderia transformar suas ilusões em dura e triste realidade, preferiu não se arriscar.
Então disse ao pobre caboclo:
— Agradecido, mas não posso entrar. Tenho pressa de regressar.
Assim falou e assim o fez.
No dia seguinte e em muitos outros voltou a sentar-se naquela poltrona e a olhar aquele quadro, do qual quase chegou a fazer parte da cena, e nestas ocasiões se punha a sonhar. Aos poucos descobriu que não eram sonhos. Na verdade, como finalmente com o tempo veio a saber, eram histórias reais, vividas, vistas ou ouvidas, que agora, talvez pelos estímulos que o quadro despertava, afloravam das profundezas de sua memória, onde durante muito tempo permaneceram adormecidas.

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Vencedor do Prêmio Flerts Nebó 2017-2018

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