Pulou de repente
da minha barriga, sem eu nem perceber ou querer. Eu ainda com aquelas pernas
inchadas, sentindo a dor no corte “Ah, que corte enorme”. No colo, chupando a
teta descaída, largas num chupão estalado a boca do meu bico e me chutas. Te
empurras, quando vi, se arrastou pelo chão, engatinhou uns dois metros e logo
se pôs de pé.
Saiu andando
três passos desengonçados e apressados para bater a cabeça na quina da mesa da
sala, tão rápido nem deu tempo de eu proteger. Caiu de bunda. Ficou um galo
enorme. Apertou a testa, deu um berro de choro ardente, mas não durou muito,
antes que eu pudesse pensar pegar o gelo já estavas andando novamente, desta
vez com firmeza, sem apoio, em compostura quase militar indo mexer no armário
de vidro que eu sempre disse que não era coisa para menino futricar.
Abriu as portas.
Viu lá uma série de caixas e jogos e disse, “Coisa mais velha do papai, credo,
quanta quinquilharia!” antes mesmo de dizer mamãe. Fechou uma das portas com
desinteresse e pôs-se a correr pela sala, dando duas voltas completas dignas do
melhor atleta dos 50 metros rasos para se esparramar no sofá, o meu velho sofá,
com as mãos todas sujas de uma lama que não vi passar e pés pretos com novas
cicatrizes de artimanha vivida. Quis pegar o controle do videogame, apertou uns
botões olhando para a tela, deu um grito de alegria largando o controle
estatelado no chão para esticar os braços acima do corpo num pulo de felicidade.
Coçou a barriga
e foi então correndo para o banheiro, encostou a porta, e quando abriu, saindo
só de toalha enrolada disse com tamanho emburramento em alto e bom tom: “Não
quero ir!”. Eu me perguntava para onde? Nem consegui ficar com raiva, pois antes
mesmo de querer partir para te dar uns tabefes, entras no quarto ao lado e bate
a porta como um vendaval. Sais de lá, já com a mochila, pronto, dizendo que
estás atrasado para a última prova.
Vais saindo, e
olha, eu nem fiz seu lanche ainda, mas logo me retalias dizendo que esse
negócio de levar lanche para escola já era, mãe, passo no débito ou no
telefone. Vai andando apressado, me dás um beijo na bochecha, eu mereço um
beijo, meio de lado com migalhas do pão que roubas do cesto da cozinha e sais
mastigando de qualquer jeito e sem compromisso com qualquer ritmo de limpeza.
Fechas a porta,
desta vez sem bater, porém, logo voltas dizendo que já sabe a faculdade que
vais fazer. Precisas de ajuda, tens que decidir, será que o dinheiro vai dar?
Eu não sei, como eu vou saber, eu nem tive tempo de fazer as contas, nenhuma
conta.
Entras no quarto
e sais gritando, alegre e estonteante: “Eu passei!!!” E são tantos beijos, e
abraços, e saltos que me pegas nos braços e me rodas acima do chão. A casa
gira, eu fico tonta, me sento na cadeira, tu entras na cozinha dizendo que vais
pegar uma água e sais de lá, sem água, sem nada, de mãos dadas com uma moça até
bonitinha, mas de sorriso morto e me apresentas como tua namorada. Ela me
cumprimenta num tchau enquanto tu arrastas pela mão, vocês entram no quarto; eu
escuto umas batidas, meu coração acelera, vou até a porta de enxerida, enquanto
ainda pensava em como ter aquela conversa, logo, sais de mochila de novo, desta
vez, mais homem do que nunca, com uma mala de rodas na outra mão. Eu pergunto
para onde vais, tu dizes que vais seguir a vida. Que vais atrás dos teus
sonhos. Vai correr atrás de ser feliz. Antes mesmo de argumentar: “Mas aqui tu
não é feliz? Eu não te fiz feliz?”, não dá tempo. Interrompes, dizendo que me ama
e que jamais esquecerás tudo que fizemos por ti. Eu nem me lembro. Parece que
eu não estava aqui.
Sais com a mala
e me deixas ali com o coração apertado, na sala agora, ecoa o vazio da minha
solidão. Eu fecho a porta do armário velho de jogos de tabuleiro que tu
deixaste aberta, que agora arranha ao movimento, procuro um pano para limpar a
gota de sangue na quina da mesa. Teu pai entra em casa e me vê triste, me fala
aquela clássica “É para isso que criamos os filhos”. O telefone toca. Eu
atendo, ouço tua voz e com mais saudade do que nunca, falo contigo, pergunto
como estás, quero saber tudo que aconteceu e novamente nem consigo ouvir a
resposta. A ligação cai.
Volto à mesa
desolada. Aperto a minha barriga, que agora dói mais, não no corte, desta vez vazia
de ti e cheia de saudade. Teu pai vai até o armário. Pega um jogo, daqueles que
chamaste de velho, o meu preferido, me dá um beijo na testa, abre o tabuleiro e
começa a montar o tabuleiro como nos velhos tempos. Ele começa a distribuir as
peças, mas somos interrompidos.
Uma mãozinha
surge na beirada da mesa, querendo mexer nas pecinhas coloridas.
Tu abres a porta
com aquela moça insossa ao teu lado, agora já mais bronzeada, agarra o pequeno
peralta e me diz para não deixar ele mexer ali, ele pode engolir, estou
acostumando mal o teu filho.
Teu pai pega o
neto no colo. Eu corro pra te abraçar, te aperto como nunca, meu coração é só
uma alegria juvenil enquanto tu dizes: “Que tola mãe! Nós estamos aqui.”
Eu sei, estás
aqui. Dentro de mim.
Para todo o sempre.
Primeiro Lugar
Prosa XVI Jornada Médico-Literária SOBRAMES SP
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