sexta-feira, 21 de maio de 2021

PRÊMIO FLERTS NEBÓ 2020

 Eis os vencedores do Prêmio Flerts Nebó para os melhores textos em prosa apresentados nas Pizzas Literárias SOBRAMES SP em 2020.

Melhor Prosa: Atirei no que Vi – Alitta Guimarães Costa Reis

Primeira Menção Honrosa – O Homem da Praça - Izabella Cristina Cunha

Segunda Menção Honrosa – Depressão – Roberto Antônio Aniche

A SOBRAMES SP agradece os avaliadores: Lúcia Elena Ferreira Leite (RJ), Josemar Otaviano de Alvarenga (MG), Amaury Braga Dantas  (PA) e Sílvio Sérgio Pontes Câmara (GO).

Parabéns a todos.

ATIREI NO QUE VI...


Intermináveis dúvidas durante quase dois anos, ela pegou no telefone depois de uma noite agitada. Largou-o, tornou a pegá-lo. “Inferno”, pensou, “ligo ou não ligo?”. Logo saiu para andar, naquela manhã ainda fria e úmida. 

A relação com ele era daquelas de enlouquecer. Não tinha certeza se gostava dele, mas queria gostar, e o queria por perto. Mas não suportava a indiferença dele. Sempre jogavam os mesmos jogos, que terminavam em farpas e silêncio mortal. Pingue-pongue. Pingue-pongue. Precisava encerrar isso com um corte radical. 

Naquela noite agitara-se muito. Tivera um sonho. Muito bom. Tudo muito claro. Solas finas na calçada irregular, ela andou por muito tempo. Parou, respirou fundo. Veio à lembrança a conversa com a amiga, que sempre dizia: “Vê se desencanta!”. A amiga era contra, dizia que era uma relação esquisita, sadomasoquista; que ela pedia um balde cheio e ele só dava um dedalzinho. “Mas que dedalzinho!”, pensava ela, “melhor que nada. E se todas as relações são assim mesmo? Não é infantil acreditar num grande amor?”. Voltou para casa. “O que ele me dá me agrada. E a própria coisa de ficar querendo mais... é excitante. Pena que tenha de rastejar. Mas, no fundo, não dizem que não se tem o que se merece, mas sim o que se negocia? Tudo é troca. É simples assim: é pouco, mas eu quero”. 

No terceiro toque o telefone atendeu. Ela explodiu, falando sem parar. “Eu amo você. Pronto, eu disse. Perdi. Tenho que aceitar o que você quer me dar, sem ficar reclamando, exigindo mais. É duro acordar como hoje, isso me sufoca, ficar sozinha é um inferno, seu desgraçado, você sabe disso, por isso me deixa sofrer. Mas você ganhou. Eu amo você, eu preciso de você, se for preciso fico com as migalhas que sobrarem, você só me quer assim, agora eu topo, viu, danem-se as conveniências, sofrer assim ninguém suporta, você está ouvindo, seu desgraçado, porque não diz nada? Estou morrendo seca, aceito até conta-gotas, me odeio por isso, mas tenho que ser real, você é tudo que eu consegui, não posso perder você só porque me dá muito pouco. Entendeu? Entendeu? Ah, meu Deus, falei tudo! ...” 

Uma pausa breve, tornada imensa pela ansiedade. Ela ouvia a própria respiração agitada. “Ele vai desligar na minha cara”, pensou, detesto quando fico histérica, o que eu faço, ele vai me xingar, ele...” 

 A voz veio mais profunda do que ela esperava: “Quer vir aqui?”, perguntou. “Onde, diz onde e eu vou”, disse ela, a voz tremia, ainda com medo. “Estou na rua tal, fica perto da quadra, entra à direita, anote o número, sabe onde é?” Ela estava confusamente decidida: “Eu acho onde é. Estou indo, por favor, meu amor, não vá embora, eu...” 

O telefone foi desligado. “O maldito vai me castigar de novo. Que endereço é esse? Não vai estar lá. E, se estiver, é capaz de me agredir. Mas preciso ir”. Custou a passar a chave na porta. Desceu às carreiras. O táxi não teve problemas em achar o lugar. No elevador, ela ainda chorava, zangada e esperançosa. Difícil, aquela situação. “Agora ele ouviu o que queria. Está com a faca e o queijo na mão, e eu...” 

Não foi preciso tocar a campainha. A porta estava entreaberta, o homem a aguardava. Aturdida, ela entrou, ele fechou a porta. Ficaram se olhando, como no sonho, ele calado. “Quem... quem é você?” Ela não estava entendendo. A voz era profunda, mais ainda do que havia notado. Olhos calmos. Observadores. Usava gostosos sapatos, velhos como o agasalho macio aberto no peito. Ela não conseguia falar. Ele continuava dizendo alguma coisa: “... tanto amor, eu tinha que saber quem você era. Seu desespero era tão familiar. Você ligou número errado, não parava de falar, e eu comecei a gostar de ouvir, tinha que ver você...” 

Essa história eles contam ainda hoje, muitas vezes, na sala onde se viram pela primeira vez. 

ALITTA GUIMARÃES COSTA REIS

Melhor Prosa – Prêmio Flerts Nebó 2020

 

O HOMEM NA PRAÇA

 


O silêncio era quase mortal.

Ele adentrou a praça vazia. Nunca imaginou que algum dia o pátio da praça sagrada pudesse estar tão oco e tão carregado ao mesmo tempo. 

A mudez e a quietude imperavam na praça que ora já fora templo de agitações, alegrias, bênçãos e renovação. Outros tempos se foram. Agora, do seu lado direito, apenas um único diácono, fiel escudeiro e única testemunha presencial da cena descomunal ali.

Olhou para o seu amigo, como quem diz: é chegada a hora. Balançou a cabeça assertivamente e prosseguiu. Afastou-se em direção ao pedestal no meio da praça.

A quietude era tanta que dava para ouvir o titilar claro de cada passo.

Os pés pisavam o chão semimolhado lentamente, ecoando o toque cálido de suas sandálias, num andar meio arrastado e úmido após a chuva do fim da tarde.

Seu caminhar já não era cheio do vigor de antes. Contudo, os passos seguiam calmos e firmes, um após o outro, mesmo que capengas para a esquerda, sequela das mazelas da idade.

Apesar de parecer cambaleante, o equilíbrio e a força, sempre seus guias, o faziam prosseguir contuso e absoluto em direção ao pedestal.

As sandálias seguiam determinadas, súditas no seu dever de levar aquele corpo para sua nobre missão: enviar uma mensagem de paz para o mundo.

Sabia que, apesar da solitude, milhares de olhos o acompanhavam. Os fiéis poderiam não estar em corpo, se faziam presentes em alma e atenção. O mundo o observava. Até mesmo os de pouca fé e os de deuses divergentes estavam de olho.

O velhote já estava acostumado a ser alvo da atenção alheia e isso não lhe carecia vaidade. Contudo, desta vez, ele tinha consciência de que os olhares eram diferentes. Não havia rostos físicos, mas ele sabia que existiam muitos corações a pesar.

No seu trajeto, apenas um chão frio da mesma terra que enterrava centenas de corpos, junto ao calor das lentes que o acompanhavam com toda gravidade, testemunhas oculares atentas do seu caminhar até o microfone.

O cair do sol entardecer ressaltava ainda mais as luzes do pedestal e das câmeras. Não eram as únicas luzes que brilhavam ali. A luz do homem cintilava, como nunca antes. Um brilho perfeito.

Olhos do mundo no velho homem.

O que dizer de tudo o que acontecia, em plenos tempos de quaresma? Qual mensagem passar ao planeta diante daquela situação de catástrofe mundial?

Em outros tempos, outras considerações seriam importantes.

Teria que fazer aquilo sozinho. Absolutamente único em corpo material. Representar e apresentar ao mundo a instauração sólida de seu novo modo de viver: o isolamento.

Sozinho, ali, naquela praça. 

Longe do toque. Distante de qualquer carinho ou retribuição humana. Longe do calor das comoções e reações. Além do público e das reverberações.

Aquela praça que já fora tão cheia de vida e fiéis, de todos os cantos do mundo, agora representava o vazio das almas perdidas.

O homem foi ao microfone, supérfluo que poderia até ser descartado. Qualquer um do outro lado da praça o escutaria em bom tom. A tecnologia faria seu papel fundamental agora naquela guerra: levar a imagem do homem absolutamente só naquela praça.

O que ele disse, nem prestaram atenção.

Não havia tanto a se dizer.

Bastava a sua presença. Sozinho naquela praça. Ele ali já dizia tudo. Carregava o pesar de mortes e despedidas, os arrependimentos de decisões de outrem. Levava o desespero, a dor, a angústia misturada à esperança em dias melhores e à certeza de que tudo que começa chegaria a um fim. 

Aquele homem, sozinho, naquela praça.

A vida jamais seria a mesma.

IZABELLA CRISTINA CUNHA

Primeira Menção Honrosa - Prêmio Flerts Nebó 2020 


DEPRESSÃO

 



            A solidão caminha pelas ruas sonolentas, silenciosa pela noite adentro. Não pergunta nomes, não bate nas portas nem precisa que elas se lhe abram. A solidão caminha silenciosa, como a névoa que alcançou todos os primogênitos, mas muito mais cruel, sem se preocupar em quem cairia em suas armadilhas. 
Como um animal peçonhento esgueiras e pelas sombras, age e ataca no silêncio quando se torna ainda mais forte, longe da luz. A solidão é uma dama de veludo que sem o menor pudor beija a face desprotegida com o beijo maldito que envolve e dissolve todos os sonhos da vida.

            Não há limites em sua busca frenética pela desgraça, vai de pensamentos a alcovas, de palavras a silêncio, da vida e da morte, sempre, independente de quem seja, abalar o coração, derrubar a alma. E de repente a solidão invade a distância e o tempo, torna as pessoas sem rosto, sem voz, sem sonhos.

...   ...    ...

Sozinho no banco da praça, debaixo da luz amarela de um poste antigo, o homem pensa em como se deixou iludir, como perdeu seus momentos de lucidez que o levariam ao paraíso etéreo que almejara desde menino. Gostaria de falar, mas não havia quem o ouvisse, não havia pessoas ao seu lado, nem na praça nem em qualquer outro lugar.

Envolvido pela névoa ele descobriu que não tinha mais palavras, as perdera todas no caminho de tantos anos até chegar àquele banco da praça. Ninguém o notava, tornara-se invisível como a avó de um texto lido no passado. Deixara-se tornar invisível, a solidão o tornou invisível num ataque de surpresa na linha do tempo de sua vida.

Era noite, como convém à solidão para entrar no coração das pessoas, envolvê-las em seus próprios pensamentos escuros tornando-as cada vez mais, seres únicos num mundo coletivo, tão únicos que não mais se enxergam.

Olhou para a luz amarela do poste e uma garoa fina começou a cair tornando a atmosfera mais fria, mais úmida, mais triste. Ninguém havia notado a sua ausência que já se tornara um tempo quase que eterno, ninguém havia notado a falta de sua voz contando estórias, pouco ou nada se lembravam de seu sorriso.

E quando ele buscava alguém na lembrança a tristeza o envolvia mais ainda, ele havia se tornado anônimo em sua própria casa, um paria do tempo perdido. Levantou-se e começou a caminhar, passos lentos, em direção a qualquer lugar. Lembrou-se de uma frase que dizia que a quem não tem um destino, qualquer caminho serve.

Talvez aquela rua jamais sentiria seus passos novamente, a lua encoberta não se lembraria mais de tê-lo visto, seus livros não seriam mais folheados buscando uma frase sequer.

Lentamente, encurvado e com os ombros caídos foi caminhando em direção a lugar nenhum, ou ao fim de todos os seus caminhos. Não havia mais nada a fazer, nada mais a dizer, nada mais a pensar. O coração se contraiu amargurado enquanto a tristeza tomava conta dos seus pensamentos.

Era um desconhecido numa fotografia velha e amassada. Nenhum recado, nenhuma saudade. Não restava mais nada a fazer, a não ser andar. Esgotara a sua cota de sacrifícios, esgotara todas as suas tentativas de se encontrar e encontrar tantas outras pessoas, não havia mais ambição, iniciativa ou sonhos. Ninguém perde o que não tem e ele tinha a certeza de que, depois de perder tudo ele atingira o estado do nada, apenas isso, um nada no meio da multidão. Lembrou-se do tempo de menino e um soluço doloroso emergiu de seu âmago. Parou, voltou-se e olhou na direção de onde viera.

E não viu nada, porque não havia mais nada. Mais nada…

ROBERTO ANTÔNIO ANICHE

Segunda Menção Honrosa - Prêmio Flerts Nebó 2020

 

 

terça-feira, 18 de maio de 2021

A MAGIA DAS ENTRELINHAS


    

           Entre os espaços mágicos das entrelinhas que permeiam a nossa existência, o tempo, as décadas da vida, colorem e dão sentido para a monotonia de cada dia.

As descobertas da infância iluminam nossas entrelinhas, o não dito, captado pelas emoções deixam marcas indeléveis e ao mesmo tempo inefáveis!  As entrelinhas nos encantam com devaneios e sonhos que nutrimos a cada instante.

Na transição insidiosa e misteriosa para a adolescência, a sensação de permanência e imutabilidade das horas de criança se evanescem, e a magia das novas descobertas nos incitam às aventuras e realizações nunca imaginadas. Quantas entrelinhas correm no texto da juventude em que o real e o imaginário se mesclam, ora acentuando a realidade, ora prevalecendo a imaginação; e se derramam nos espaços vazios silenciosos das entrelinhas, mas repletos de fantasias.

A vida adulta nos enlaça e deixa a juventude para trás; sem ensaio enfrentamos o cotidiano! Com pressa, dançamos uma música desconhecida, e as entrelinhas das pautas da canção escrita não são pausas, mas soam vigorosas e fortes.

A nova geração aparece e promove instantes preciosos. Os filhos irão expandir inúmeras entrelinhas nas novas páginas da vida. Emoções marcadas pelo trabalho intenso de embalar, cuidar e guiar. Novos sentimentos, ainda desconhecidos, surgem e realçam lembranças que nos transportam de volta para nossa infância com tonalidades atenuadas.

Na convivência com netos, a magia retorna, e traz consigo a meninice escondida, para uma alma vivida, sonhada, amada. Na calmaria entre algumas ondas, do dia a dia, do mar das nossas histórias, nos entregamos aos encontros profundos, certeiros e inesperados.

Convivemos com recordações passadas e comemoramos esse delicioso romance que colore o espaço das entrelinhas das décadas da vida e irradiam muita energia que perdura, mesmo com as entrelinhas não vividas e deixadas para trás, não se perde a magia.

SUZANA GRUNSPUN

Texto vencedor da Super Pizza Literária SOBRAMES SP de fevereiro de 2021 com o tema "Entrelinhas".

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...