O silêncio era quase mortal.
Ele adentrou a praça vazia. Nunca
imaginou que algum dia o pátio da praça sagrada pudesse estar tão oco e tão
carregado ao mesmo tempo.
A mudez e a quietude imperavam na praça
que ora já fora templo de agitações, alegrias, bênçãos e renovação. Outros
tempos se foram. Agora, do seu lado direito, apenas um único diácono, fiel
escudeiro e única testemunha presencial da cena descomunal ali.
Olhou para o seu amigo, como quem diz:
é chegada a hora. Balançou a cabeça assertivamente e prosseguiu. Afastou-se em
direção ao pedestal no meio da praça.
A quietude era tanta que dava para
ouvir o titilar claro de cada passo.
Os pés pisavam o chão semimolhado
lentamente, ecoando o toque cálido de suas sandálias, num andar meio arrastado
e úmido após a chuva do fim da tarde.
Seu caminhar já não era cheio do vigor
de antes. Contudo, os passos seguiam calmos e firmes, um após o outro, mesmo
que capengas para a esquerda, sequela das mazelas da idade.
Apesar de parecer cambaleante, o
equilíbrio e a força, sempre seus guias, o faziam prosseguir contuso e absoluto
em direção ao pedestal.
As sandálias seguiam determinadas,
súditas no seu dever de levar aquele corpo para sua nobre missão: enviar uma
mensagem de paz para o mundo.
Sabia que, apesar da solitude, milhares
de olhos o acompanhavam. Os fiéis poderiam não estar em corpo, se faziam
presentes em alma e atenção. O mundo o observava. Até mesmo os de pouca fé e os
de deuses divergentes estavam de olho.
O velhote já estava acostumado a ser
alvo da atenção alheia e isso não lhe carecia vaidade. Contudo, desta vez, ele
tinha consciência de que os olhares eram diferentes. Não havia rostos físicos,
mas ele sabia que existiam muitos corações a pesar.
No seu trajeto, apenas um chão frio da
mesma terra que enterrava centenas de corpos, junto ao calor das lentes que o
acompanhavam com toda gravidade, testemunhas oculares atentas do seu caminhar
até o microfone.
O cair do sol entardecer ressaltava ainda
mais as luzes do pedestal e das câmeras. Não eram as únicas luzes que brilhavam
ali. A luz do homem cintilava, como nunca antes. Um brilho perfeito.
Olhos do mundo no velho homem.
O que dizer de tudo o que acontecia, em
plenos tempos de quaresma? Qual mensagem passar ao planeta diante daquela
situação de catástrofe mundial?
Em outros tempos, outras considerações
seriam importantes.
Teria que fazer aquilo sozinho.
Absolutamente único em corpo material. Representar e apresentar ao mundo a
instauração sólida de seu novo modo de viver: o isolamento.
Sozinho, ali, naquela praça.
Longe do toque. Distante de qualquer
carinho ou retribuição humana. Longe do calor das comoções e reações. Além do
público e das reverberações.
Aquela praça que já fora tão cheia de
vida e fiéis, de todos os cantos do mundo, agora representava o vazio das almas
perdidas.
O homem foi ao microfone, supérfluo que
poderia até ser descartado. Qualquer um do outro lado da praça o escutaria em
bom tom. A tecnologia faria seu papel fundamental agora naquela guerra: levar a
imagem do homem absolutamente só naquela praça.
O que ele disse, nem prestaram atenção.
Não havia tanto a se dizer.
Bastava a sua presença. Sozinho naquela
praça. Ele ali já dizia tudo. Carregava o pesar de mortes e despedidas, os
arrependimentos de decisões de outrem. Levava o desespero, a dor, a angústia
misturada à esperança em dias melhores e à certeza de que tudo que começa
chegaria a um fim.
Aquele homem, sozinho, naquela praça.
A vida jamais seria a mesma.
IZABELLA CRISTINA CUNHA
Primeira Menção Honrosa - Prêmio Flerts Nebó 2020