sexta-feira, 21 de maio de 2021

ATIREI NO QUE VI...


Intermináveis dúvidas durante quase dois anos, ela pegou no telefone depois de uma noite agitada. Largou-o, tornou a pegá-lo. “Inferno”, pensou, “ligo ou não ligo?”. Logo saiu para andar, naquela manhã ainda fria e úmida. 

A relação com ele era daquelas de enlouquecer. Não tinha certeza se gostava dele, mas queria gostar, e o queria por perto. Mas não suportava a indiferença dele. Sempre jogavam os mesmos jogos, que terminavam em farpas e silêncio mortal. Pingue-pongue. Pingue-pongue. Precisava encerrar isso com um corte radical. 

Naquela noite agitara-se muito. Tivera um sonho. Muito bom. Tudo muito claro. Solas finas na calçada irregular, ela andou por muito tempo. Parou, respirou fundo. Veio à lembrança a conversa com a amiga, que sempre dizia: “Vê se desencanta!”. A amiga era contra, dizia que era uma relação esquisita, sadomasoquista; que ela pedia um balde cheio e ele só dava um dedalzinho. “Mas que dedalzinho!”, pensava ela, “melhor que nada. E se todas as relações são assim mesmo? Não é infantil acreditar num grande amor?”. Voltou para casa. “O que ele me dá me agrada. E a própria coisa de ficar querendo mais... é excitante. Pena que tenha de rastejar. Mas, no fundo, não dizem que não se tem o que se merece, mas sim o que se negocia? Tudo é troca. É simples assim: é pouco, mas eu quero”. 

No terceiro toque o telefone atendeu. Ela explodiu, falando sem parar. “Eu amo você. Pronto, eu disse. Perdi. Tenho que aceitar o que você quer me dar, sem ficar reclamando, exigindo mais. É duro acordar como hoje, isso me sufoca, ficar sozinha é um inferno, seu desgraçado, você sabe disso, por isso me deixa sofrer. Mas você ganhou. Eu amo você, eu preciso de você, se for preciso fico com as migalhas que sobrarem, você só me quer assim, agora eu topo, viu, danem-se as conveniências, sofrer assim ninguém suporta, você está ouvindo, seu desgraçado, porque não diz nada? Estou morrendo seca, aceito até conta-gotas, me odeio por isso, mas tenho que ser real, você é tudo que eu consegui, não posso perder você só porque me dá muito pouco. Entendeu? Entendeu? Ah, meu Deus, falei tudo! ...” 

Uma pausa breve, tornada imensa pela ansiedade. Ela ouvia a própria respiração agitada. “Ele vai desligar na minha cara”, pensou, detesto quando fico histérica, o que eu faço, ele vai me xingar, ele...” 

 A voz veio mais profunda do que ela esperava: “Quer vir aqui?”, perguntou. “Onde, diz onde e eu vou”, disse ela, a voz tremia, ainda com medo. “Estou na rua tal, fica perto da quadra, entra à direita, anote o número, sabe onde é?” Ela estava confusamente decidida: “Eu acho onde é. Estou indo, por favor, meu amor, não vá embora, eu...” 

O telefone foi desligado. “O maldito vai me castigar de novo. Que endereço é esse? Não vai estar lá. E, se estiver, é capaz de me agredir. Mas preciso ir”. Custou a passar a chave na porta. Desceu às carreiras. O táxi não teve problemas em achar o lugar. No elevador, ela ainda chorava, zangada e esperançosa. Difícil, aquela situação. “Agora ele ouviu o que queria. Está com a faca e o queijo na mão, e eu...” 

Não foi preciso tocar a campainha. A porta estava entreaberta, o homem a aguardava. Aturdida, ela entrou, ele fechou a porta. Ficaram se olhando, como no sonho, ele calado. “Quem... quem é você?” Ela não estava entendendo. A voz era profunda, mais ainda do que havia notado. Olhos calmos. Observadores. Usava gostosos sapatos, velhos como o agasalho macio aberto no peito. Ela não conseguia falar. Ele continuava dizendo alguma coisa: “... tanto amor, eu tinha que saber quem você era. Seu desespero era tão familiar. Você ligou número errado, não parava de falar, e eu comecei a gostar de ouvir, tinha que ver você...” 

Essa história eles contam ainda hoje, muitas vezes, na sala onde se viram pela primeira vez. 

ALITTA GUIMARÃES COSTA REIS

Melhor Prosa – Prêmio Flerts Nebó 2020

 

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