Por: Carlos Augusto Ferreira Galvão
PSIQUIATRIA
Ainda que pesassem os dez anos que não ia a Belém do Pará, mesmo ver a admiração estampada no rosto de meus velhos mestres, afinal o antigo pupilo vinha representando São Paulo no primeiro evento da Sobrames paraense, significando assim ter liderado velhos ícones da medicina brasileira, não foram estas as maiores emoções daqueles dias e sim o desfecho da apresentação de meu trabalho de nome “A Cidade Encantada”, na II Jornada Nacional da Sobrames, que aconteceu em 2003.
É fácil escrever sobre Belém, a cidade dos mil encantos. A nostalgia engasgou-me e o fato é que terminei de ler o texto de forma bastante molhada, sendo acompanhado por lágrimas de muitos dos que me ouviam. Um silêncio emocionado de alguns segundos seguiu-se terminando com a pergunta da jovem médica que presidia a sessão literária, menina de vinte e tantos anos, que me atingiu como se fosse um soco emocional: -”Tudo bem Carlos Galvão... Teu texto dispensa comentários, mas tem algo que quero te perguntar desde que soube que virias para nossa jornada; Quem é Silas dos Santos Galvão, e o que ele representa para ti?”
Silas dos Santos Galvão, meu pai, médico formado pela faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia em 1944, especializado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo em 1950, exerceu sua atividade profissional no estado do Pará como sanitarista do ministério da saúde, até falecer aos 55 anos de idade. E agora uma médica, pouco mais que uma garota, seguramente nascida depois de sua morte trinta anos antes, pergunta-me quem era meu pai. Respondi e, emocionado, perguntei o porquê da pergunta. –”É que sou a responsável pela Esquistosomose mansonica na Secretaria da Saúde, e um dia resolvi pesquisar quem já tinha andado por este caminho, e o pioneiro foi teu pai”, esclareceu e jogou-me a uma espécie de nocaute afetivo com mais uma pergunta: -”E quem era o acadêmico de medicina que o acompanhou em seus últimos trabalhos?”. Deus do céu! Que velhas lembranças...
A Esquistossomose mansonica, doença grave, muito incapacitante e muitas vezes mortal, não é uma doença americana; atravessou o Atlântico nos navios negreiros, vinda da África alojada nos intestinos dos negros e espalhou-se por quase todo o país, pois encontrou ajuda de um caramujo de nome Bionphalaria glabata e de outra entidade tão perniciosa quanto o pequeno molusco: O Estado nacional e seu eterno descaso para com tudo o que diz respeito ao povo brasileiro. Então se tornou endêmica no sul, sudeste, centro oeste, nordeste, mas poupou a Amazônia. Várias teorias tentam explicar o fenômeno, que vão desde a baixa penetração escravagista no norte, passando pelo isolamento da região até ao grande volume hídrico, que dificulta a procura do “Miracídio”, larva gerada no ovo do parasita, pelo hospedeiro intermediário: o caramujo.
Em meados da década de sessenta do século passado, Silas dos Santos Galvão detectou o surgimento de ovos de Shistisoma mansoni em fezes de crianças de Belém do Pará, que nunca tinham saído da cidade. Ele já andava preocupado pois, com a abertura da rodovia “Belém-Brasília”, levas de pessoas de regiões endêmicas chegariam e poderiam trazer a moléstia, o que de fato aconteceu.
Estava eu no primeiro ano de medicina na Universidade Federal do Pará, quando meu pai expôs sua grande preocupação: tinha planos de descrever os primeiros focos da Esquis-tossomose mansônica na cidade, mas esbarrava em poucos recursos para os exames, levan-tamentos sanitários, etc., e perguntou de que forma a velha Escola de Medicina da Univer-sidade Federal do Pará poderia ajudar.
A adesão foi total. A cadeira de Parasi-tologia cedeu seus laboratórios e ensinou-nos a preparação e feitura dos exames de fezes bem como a identificação dos ovos do parasito, e conseguimos fazer um amplo levantamento nas crianças, identificando muitas contaminadas, percentual em torno de quarenta por cento. A cadeira de Doenças Tropicais do quarto ano também se interessou e ajudou bastante nos levantamentos sócio-sanitários. Verificamos que a doença já se alastrava em áreas alagadas da cidade de Belém.
Com tal ajuda, Silas Galvão brilhan-temente descobriu, descreveu e, posteriormente, saneou os primeiros focos de uma doença grave que chegava a Belém do Pará, mostrando que embora não possua o Bionphalaria glabata, Belém do Pará tem o Bionphalaria stramínea que se prestava a eliminar as “Cercárias”, larvas aptas a penetrar na pele dos indivíduos, iniciando assim um novo ciclo da doença e que esta larva, tanto quanto a sua preceptora o “Miracídio”, havia se adaptado à água ligeiramente salobra da costa belenense.
Foi emocionante sentir que Belém do Pará não tinha esquecido Silas dos Santos Galvão depois de três décadas de sua morte. Em seu tempo ele foi um radar sanitário daquela cidade e faz parte da história da medicina de lá. Ser filho dele e fazer parte desta história é o maior orgulho de minha vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário