domingo, 4 de agosto de 2019

UMA HISTÓRIA NASCIDA EM NOVEMBRO


Por: Alitta Guimarães Costa Reis
PSIQUIATRIA
 
       Ela era baixinha, bem educada. Cabelos grisalhos bem penteados, ondas mantidas com fixador, duas alianças no anular esquerdo, sorriso tímido encimando a gola branca com rendinhas, blusa azul clarinha, saia escura de lã cobrindo os joelhos, sapatos fechados de calcanhar bem estruturado, brinquinhos delicados como seu perfume, unhas cuidadas, sem esmalte. Uma “lady”. Estávamos na mesma repartição, esperando. Levantei-me para tomar café, perguntei se ela queria que eu trouxesse. “Não, minha filha”, disse ela, “gosto muito, mas meu médico me proibiu de tomar café”. Vim com meu café e me sentei, e logo conversávamos como velhas amigas. A conversa fluía tão fácil que fomos ficando entusiasmadas, encantadas com a descoberta de tanta afinidade. Após cerca de vinte e cinco minutos, ela foi chamada, levantou-se, me abraçou, deu-me um beijo no rosto e agradeceu muito, pedindo que Deus me aben-çoasse. Logo fui chamada também e nos perdemos uma da outra: eu gostaria de ter trocado pelo menos um número de telefone...
No outro ano precisei ir à repartição de novo, e o senhor que havia me atendido mais de uma vez pegou o telefone e disse: “Adivinha quem está aqui...” Logo chegou outro senhor, veio direto ao meu encontro e disse: “Eu queria agradecer o que fez pela minha mãe. Ela faleceu há meses, disse que a conheceu aqui e que vocês tiveram uma ótima conversa, uma das melhores que ela teve na vida. De que vocês tanto fala-ram?” Sinceramente, demorei um pouco para me lembrar do acontecido, mas logo me veio à mente a figura da bondosa senhora; da conver-sa não me recordei, para desapontamento do senhor. Ele disse que ela se lembrava de que eu gostava de café. Que queria que ele me entregasse uma coisa, mas ele ficou preocupado, porque era coisa usada e um pouco antiga. E se eu não gostasse? Mas ela insistiu, dizendo que eu era uma pessoa compreensiva e que iria entender direitinho o presente. “Ela me fez ver que a minha vida teve sentido”, ela contou, “foi realmente um encontro de almas irmãs”. Então ele guardou o presente e tentou me achar, mas do meu nome ela não se lembrava. Pela descrição conseguiu me localizar, e ficou esperando que eu voltasse. Disse que o presente não estava ali, se eu podia esperar. Não, não podia. Sugeri que enviasse pelos Correios. “Não é uma boa ideia”, ele disse. Fui chamada nova-mente por um funcionário da repartição, e depois procurei uma toalete. E nos desencontramos. Dois meses depois voltei, era horário de almoço, tinha que esperar e resolvi comer alguma coisa. Fui até a lanchonete mais próxi-ma. De repente eu ouvi: “Não saia daqui!”
Era ele, o mesmo senhor. Disse que voltaria em alguns minutos, o que realmente aconteceu. Tornou a agradecer, e me entregou uma bolsa novinha em folha, com um objeto dentro cheio de plásticos em volta para proteger. Tornou a pedir desculpas pela simplicidade do presente, e disse: “Minha mãe usou isso por vários anos, era especial para ela, presente de pessoa muito querida. Obrigada por deixá-la tão feliz”. Lágri-mas nos olhos, me abraçou e me deu um beijo no rosto, de forma exatamente igual a sua mãe havia feito no primeiro e último encontro que tivemos. E saiu, precipitadamente, como um homem que se recusava a ser visto chorando. Emocionada também, fiz uma breve oração para a mãe dele, enquanto começava a abrir a bolsa e afastar os plásticos. E lá estava o meu presente, que agora é usado orgulhosamente em minha cozinha: uma linda e bem conservada cafeteira.
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*Terceiro lugar no concurso de prosas da X Jornada Nacional da SOBRAMES e XV Jornada Médico-Literária Paulista (Agosto 2019 - SP) 

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