Por: Sérgio Perazzo
PSIQUIATRIA
No mesmo cesto de lixo a orelha
de Van Gogh, a perna do Capitão Acab de Moby Dick e a mão do Capitão Gancho.
Mesmo destino.
Fiquei por aqui matutando se Van Gogh
cortando a própria orelha estaria mais que obedecendo a ordens de um mundo
alucinado e impiedoso. Vedando a ferida que ficou com um pano encardido,
representado num auto-retrato, queria apenas impedir que os sons que poderiam
invadir sua cabeça ocupassem o lugar de suas imagens internas, de suas cores
fulgurantes.
O tamponamento da orelha, mais do que
qualquer coisa, impediria que lhe escorressem para suas telas e para o mundo os
roxos e negros de suas noites eternas e os amarelos dos trigais, dos seus girassóis
e de sua cadeira de palha.
Não tendo à mão uma baleia branca, no caso do
Capitão Acab ou um crocodilo, no caso do
Capitão Gancho, arrancou a própria orelha, criando uma ferida na sua
deslumbrante inspiração. Foi-se a orelha, ficou o auto-retrato que, certamente,
já foi objeto de mil interpretações, de matéria de livros, de ensaios
brilhantes e de teses e mais teses.
Quantas vezes nos auto-mutilamos, afogando
sentimentos mal disfarçados ou mal compreendidos, para que não nos transborde a
alma?
Quantas vezes recorremos a nossas baleeiras e
a nossos navios-piratas neste afã de temer e de enfrentar tempestades?
Melhor baleeiras e navios-piratas à mercê de
ventanias e furacões, oferecendo algum abrigo no mar encapelado do que nada.
Melhor que casquinhas de nozes flutuando perdidas depois
do naufrágio. Melhor que navios-fantasmas. E assim se associam o cego e
o surdo-mudo, o gatuno e o vigarista, o coxo e o maneta, o roto e o esfarrapado,
num pacto de solidão e silêncio.
Fica difícil acreditar que o mundo não é
assim, que está assim. Ilha universal cercada de violência por todos os lados.
Toda crueldade humana vindo à tona num mar cibernético tornado dialógico em
comunicação constante através do celular que, como diriam nossos avós, já virou
cachaça, nos deixando impressa na prega do cotovelo a picada traiçoeira desta
drogadição, esta nova barbárie. Me adicione, pelo amor de Deus ao seu WhatsApp
deste altar de alta tecnologia transcendental!
E de lá, olhando para aquele casal, frente a
frente no banco do metrô, me pareceu enxergar nos dois afinidades não
percebidas. Tanto é que, chamei-os de casal, quando, evidentemente, eram
desconhecidos um do outro. Logo inventei uma história romântica, uma paixão
arrebatadora, um amor à primeira vista, à moda antiga, talvez não tão antiga
assim. Jovens e de posse plena de suas juventudes, transbordando naturalmente
beleza e sedução. Um instante a ser registrado para sempre num quadro de Van
Gogh de cores perturbadoras, navegando em veleiros de velas brancas acima de monstros
marinhos, baleias e crocodilos. Sou mesmo um incorrigível inventor de romances!
Entretanto, estava cada um imerso, embora
frente a frente, nas mensagens de seus celulares, teclando alucinadamente, e
não notaram um ao outro.
Quisera
eu viver o não vivido à margem do celular. Queria capturar as cores instigantes
de Van Gogh. Queria navegar, não nas ondas dialógicas da internet, mas
na emoção de um grande amor, tendo como aplicativo o espírito de aventura que
flagrasse o momento e o transformasse em presença viva e insubstituível. Queria
não precisar cortar minha orelha para conservar em mim o som e a imagem das
coisas frugais e voláteis. Queria não
chegar a tais extremos, extremos de uma dor sem anestesia, sem assentamento e
sem curativo palpável, pendurado como um quadro na parede de um museu para
sempre revisitado, para sempre renovado.
***
Menção Honrosa Prêmio Flerts Nebó 2017-2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário