quarta-feira, 3 de julho de 2019

EM VOLTA DA MESA

        
Por: Sérgio Perazzo
PSIQUIATRIA

        Afinal de contas, se não era para rir, que serventia tem contar histórias em volta da mesa depois do jantar? Essa mesa, já centenária, de jacarandá maciço da Bahia, que guarda em si mesma tanto segredo e tanto folclore de família, um cofre-forte inviolável que se impõe pela simples presença constante e respeitável através dos muitos anos.
Ora mesa de banquetes, de casamentos, de natais, mesa de jogar banco imobiliário, de fazer o dever de casa no fim do dia caindo de sono, de sustentar ritmados solavancos de trem de ferro da  máquina de costura portátil, doces ocupações da vida, mediadas por um móvel de madeira de lei. Ora altar de novenas, ora mesa de velórios (por que não sua presença também na morte?), no tempo já tão antigo, em que os mortos tinham sua última estação no mundo dos vivos, antes da tão famosa morada eterna, velados na sala e encima da mesa.
Foi assim com Genoíno e com tia Abelarda. Ela morreu na casa tão de repente (lembra?), que as crianças pequenas foram tiradas pela janela para não enfrentarem a morta enco-lhidinha no meio do caixão e a decoração fúnebre que, como por encanto, emergiu da perua da funerária da Santa Casa, estacionada defronte da casa como ave de mau agouro.
Pois foi nesse mesmo velório do velho casarão que o irmãozinho mais novo, então com dois ou três aninhos, deslumbrado com as velas em torno da defunta, batia palminhas e cantava parabéns pra você na sua irresistível inocência. Um toque de humor involuntário que se tornou macabro no anedotário familiar. Uma tentativa de atenuar o gosto amargo da morte crua, per-sonificada, desta vez, pela tia Abelarda, bem no meio da sala de jantar, estirada na mesa de jacarandá, ofuscando os banquetes e os quitutes da vovó, dispostos em toalha de linho, prataria e porcelanas. Ramos de flores frescas em apanhados leves e gentis no lugar das coroas fúnebres de flores roxas asfixiadas e agonizantes.
Bem, mas não é para falar de coisas tristes, já chega o dia-a-dia com seus boletos,impostos e promissórias, essa inadimplência geral do mundo capitalista. Já chega isso. Duro é achar motivo para rir, essa agulha em monte de feno, essa raridade de hoje em dia. Já repararam que não se conta mais piada e quando se conta é piada velha? Pois é, estão assim as coisas. Tudo triste, sô, uma tristeza só. E dizer que quando o marceneiro escolheu o jacarandá para fazer aquela mesa, pensou nisso tudo, em tudo que essa mesa ia suportar, o encaixe perfeito, os pregos invisíveis, o melhor verniz fosco, os pés bem torneados, firmes e escarrapachados que nem eles.
Era assim, o avô na cabeceira de sus-pensórios e a camisa aberta por causa do calor, tio Chiquinho simplesmente, a primaiada de todas as bandas, sai pra lá cachorro, sai pra lá gato sonso, a travessa fumegante do ensopado da avó está chegando e aterrissando com música de rádio no fundo, uma espécie de trilha sonora. O ultimo delírio da tia Castorina falando com a parede da frente coisas engraçadas, a louca mansa da família, hoje ausentes, suas pegadas impressas no tapete e no assoalho brilhando de cera de carnaúba, deslizando com chinelo de feltro. 
Que quero dizer com isso? Que a vida é muito curta, que a vida é muito rápida? Isso todo mundo já sabe, não precisa tornar a dizer. Não precisa tomar tento. É só olhar em volta. O que ali estava, não está mais. E aquele enfeite novo, aquela jarra eu não conhecia, nem o bebê mais novo da família que, por sua vez, também me estranha. O computador ocupa um lugar de destaque, o trono real, bem no lugar do piano, há muito que foi vendido por quaisquer dez mil réis, de quebra as partituras de tangos e chorinhos, mas a mesa fica como guardiã dos séculos mais recentes e das coisas engraçadas arredondando as arestas do tempo.

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