Por: Sérgio Perazzo
PSIQUIATRIA
O que tem em comum uma caneca de estanho, uma valsa de Debussy e um relógio art-déco? Aparentemente nada.
Visto pela fresta da janela, pelo lado de dentro, esse resto de sol, vindo do poente, bate que bate em cheio na caixa do relógio, tangenciando a alma. Retificando cada movimento circular dos ponteiros e com isso aplainando o espírito e desdobrando o dia no seu suspiro final, arremate dos males, ressurreição das boas coisas, de permanente lembranças. Uma overture em sol maior.
Relógio que foi presente de aniversário ali, pelos idos de 1938, design art-déco combinando com os lustres do teto e a luminária daquele canto, como era moda, a tampa de vidro que se abria toda manhã ou quase toda manhã, pra dar corda com a chavinha fixada na fechadura, permanentemente, a portinhola de vidro abaulada permitia abrir e fechar sem arranhar o vidro.
Desde que me entendo por gente, era o pai que dava a corda no relógio, sempre deixando dez minutos adiantado, tal o medo de chegar atrasado seja onde for, eliminando com este estratagema, a angústia do tempo, as coisas de última hora. Eu esperava o arremate. Dada a corda, o relógio tocava um pequeno trecho de uma valsa de Debussy como sinal de dever cumprido e se calava ao mesmo tempo que o café se tomava na caneca de estanho que eu imaginava ser rescaldo de velhas estalagens, daquelas com viga no teto e cortina florida na janela, com direito aos Três Mosqueteiros e tudo, transportando o colar da rainha, espadas na bainha.
Era uma casa de vila distante meia quadra da Ponte de Tábuas, entre o Jardim Botânico e a Vila Hípica. Sempre me pareceu uma visão de braços abertos e um chão antiderrapante mesmo se grama molhada que nos permitia, nós, crianças, correr em segurança até o portão por onde entravam as visitas, movimentando as tardes de domingo.
Só uma vez me lembro que escorreguei. Corria para receber o padrinho. Era carnaval e estava fantasiado de holandês. Fantasia de cetim com botões dourados, mais uma proeza de minha mãe que a cada ano inventava uma fantasia nova: pirata, caubói, cigano, marinheiro, tirolês, rumbeiro, escravo de Bagdá e, dessa vez, holandês, a única que repetiu dois anos seguidos. Acho que morrera uma bisavó em pleno carnaval e não houve ânimo para invenção nova, falta de dinheiro não era. Só sei que a calça do holandês, azul, o colete era vermelho e a camisa branca, ganhou um remendo caprichado para dar conta do tamanho da perna que tinha crescido de um ano para o outro. Mas o tamanco de madeira, de bico arrebitado, tamanco holandês, era o mesmo e estava bem apertado no pé. Sai correndo em busca do padrinho no portão. Escorreguei dessa vez, ralei o joelho e a fantasia bem na hora de ir à matinê com meus irmãos e a prima. Confesso que chorei. Mais pela fantasia e pelo vexame que pelo joelho. É claro que a mãe engenhosa que era, pintou o arranhão com mercúrio cromo e costurou os joelhos da fantasia deixando duas cerziduras que ficaram como cicatrizes marcando essa viagem de velhos carnavais, tulipas bordadas, colo de mãe e abraço do padrinho. De resto, o salão de baile onde deságuam todas as lágrimas, todos os dez minutos adiantados da minha vida marcados pelo velho relógio e o cachimbo de holandês, adereço da fantasia pendurado na boca, que saiu meio torto, meio tremido na desbotada fotografia de um fevereiro perdido em art-déco e calendário de folhinha.
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